De remédio para doenças respiratórias a vacinas contra pandemias, nos últimos 20 anos o Instituto Butantan já realizou mais de 30 ensaios clínicos – etapa primordial no desenvolvimento de produtos farmacêuticos para a saúde pública. Mas um deles tem lugar especial entre os demais: o projeto da vacina da dengue, ponto de virada da área e um dos maiores ensaios clínicos já conduzidos no país. Com mais de 16 mil voluntários, o estudo envolveu uma rede de 16 centros de pesquisa em 14 estados brasileiros. Foi essa infraestrutura e conhecimento que, anos depois, possibilitou ao Butantan responder rapidamente à Covid-19 com o ensaio clínico da CoronaVac e se preparar para futuras pandemias.
O pontapé inicial da vacina da dengue foi dado entre 2009 e 2010, quando o número de casos da doença triplicou no país. Com o objetivo de desenvolver uma vacina, ainda inexistente na época, o Butantan uniu esforços com os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos. A instituição norte-americana cedeu as cepas dos quatro sorotipos do vírus atenuados para que o Butantan formulasse o produto. Enquanto a fase 1 foi conduzida nos EUA, o Butantan foi responsável por realizar as fases 2 e 3 no Brasil – era necessário avaliar a segurança e a eficácia do imunizante em um país onde o vírus circulava.
Foi também nessa época, em 2011, que o Butantan oficializou a criação da Divisão de Ensaios Clínicos e Farmacovigilância, com a contratação de profissionais dedicados a coordenar estudos clínicos em seres humanos. Até então, esses ensaios eram desenvolvidos por pesquisadores de universidades parceiras e indústrias farmacêuticas, e a decisão de expandir a infraestrutura do Instituto permitiu que o trabalho fosse absorvido por uma equipe dedicada.
A fase 2, conduzida entre 2013 e 2015, mostrou a segurança e a imunogenicidade da vacina formulada pelo Instituto Butantan em 300 voluntários com idades entre 18 e 59 anos. Já a fase 3, iniciada em 2016, avaliou a segurança e a eficácia do imunizante em mais de 16 mil pessoas com idades entre 2 e 59 anos. O resultado, publicado na New England Journal of Medicine, foi 79,6% de eficácia geral, 89,2% de eficácia naqueles que já tinham contraído dengue e 73,5% de eficácia em quem nunca teve contato com o vírus.
Para recrutar esse elevado número de participantes, o Instituto estabeleceu parcerias com centros de pesquisa já consolidados e contribuiu na capacitação de novos centros. “Algumas unidades básicas de saúde precisaram ser adaptadas para funcionar como centro de pesquisa clínica. Com sua expertise, o Butantan ofereceu treinamentos para profissionais da saúde e ajudou a desenvolver esses centros, investindo na infraestrutura necessária e capacitando pessoal para conduzir e gerir ensaios clínicos”, diz a gerente de Farmacovigilância do Butantan, Maria Beatriz Bastos Lucchesi.
Anos depois, a rede de centros de pesquisa clínica estabelecida pelo Butantan possibilitou uma resposta rápida frente ao SARS-CoV-2. “A dengue foi o primeiro grande estudo que fizemos, que mesmo com recursos limitados e uma equipe pequena, foi um sucesso. Depois, na pandemia de Covid-19, estávamos capacitados não só para conduzir o ensaio clínico, mas também para reunir todos os dados necessários para solicitar a aprovação emergencial”, afirma Beatriz.
O reconhecimento do trabalho levou a equipe a ser convidada para participar de um consórcio internacional de preparação contra surtos de Zika, o ZIKA-Plan, composto por 25 instituições de pesquisa da América Latina, América do Norte, África, Ásia e Europa. O Butantan auxiliou na avaliação da prevalência do vírus Zika no Brasil por meio da análise de amostras de sangue de voluntários do estudo da vacina da dengue.
Segundo a coordenadora de Redação Médica do Butantan, Maria da Graça Salomão, o projeto também trouxe ganhos para o Brasil, despertando o interesse da iniciativa privada em conduzir mais ensaios clínicos no país. “Nos últimos anos, o cenário da pesquisa clínica no Brasil ganhou força, o que tem gerado um número de empregos significativo”, aponta.
De acordo com o estudo A Importância da Pesquisa Clínica para o Brasil, publicado pela Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) em 2022, os benefícios da pesquisa clínica para um país incluem movimentação da economia, aumento da produção científica e inovação e fortalecimento do sistema de saúde. Hoje, o Brasil tem o 7º maior mercado farmacêutico do mundo e é o 20º país que mais desenvolve estudos clínicos. A pesquisa sugere que há potencial para alcançar a 10ª posição, devido à diversidade da população e à presença de recursos humanos capacitados.
O caminho até o estudo
Até atingir a maturidade para comandar um ensaio clínico tão robusto como o da dengue, a equipe do Butantan enfrentou uma série de desafios. O primeiro estudo clínico feito pela instituição foi a avaliação de um surfactante pulmonar para tratar a Síndrome do Desconforto Respiratório do recém-nascido, em 2005. Na época, a pesquisa ficou a cargo de médicos neonatologistas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e o Butantan firmou um acordo com uma empresa privada para fabricar o produto.
“O sucesso daquele estudo levou ao entendimento de que era importante o Butantan ter uma área própria de ensaios clínicos, devido à necessidade de se desenvolver novas vacinas”, afirma o gerente de Desenvolvimento e Inovação de Produtos do Butantan, Paulo Lee Ho. O produto acabou sendo descontinuado por decisão estratégica da época.
A pesquisa da vacina do rotavírus, em 2008, também foi importante para as equipes internas aprenderem sobre protocolos, recrutamento de voluntários, transporte de materiais e todos os passos que envolvem o desenho de um ensaio clínico. O estudo teve colaboração de instituições como Instituto Adolfo Lutz e Instituto de Medicina Tropical.
A gerente de Desenvolvimento de Processos do Laboratório Piloto de Vacinas Virais, Neuza Frazatti Gallina, que participou do projeto do rotavírus e liderou o estudo da dengue, reforça a importância da cooperação entre instituições nesse processo. “Era algo relativamente novo para nós e tivemos muitas dificuldades, principalmente para construir o protocolo do ensaio clínico. Descrever o produto, determinar a faixa etária alvo, os requisitos para participar do estudo, os critérios de exclusão… Foram meses de reuniões com os colaboradores para obter o protocolo final”, explica.
A logística de transporte – das vacinas e das amostras dos pacientes – foi outra lição importante. Segundo Neuza, ter um esquema já estabelecido com a vacina do rotavírus ajudou significativamente durante o estudo da dengue. Mas como eram produtos muito diferentes, foram necessárias algumas adaptações para antecipar qualquer tipo de problema, exigindo a montagem de kits com o passo a passo do que fazer em caso de incidentes.
Como a própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tinha menos de dez anos de existência, também foi preciso aprender sobre questões regulatórias. “Hoje, há regulamentações claras, mas na época, com um órgão regulador no início das atividades e o Instituto também iniciante na área, tivemos que superar muitos obstáculos”, completa.
A complexidade da criação de um produto para saúde impede que a maioria dos avanços científicos chegue às etapas finais de desenvolvimento. Cerca de uma em cada 1.000 descobertas de candidatos vacinais ou terapêuticos chegam até os ensaios clínicos, e uma em cada 10 novas drogas tem sucesso nesta etapa da pesquisa, de acordo com estudo da Universidade de Washington – o que é popularmente chamado de “vale da morte” pelos cientistas.
Para a gerente de Farmacovigilância Maria Beatriz Lucchesi, após o sucesso do estudo da dengue, o Butantan alcançou um patamar que o torna uma instituição completa. “Hoje, fazemos desde pesquisa básica de bancada até o desenvolvimento clínico, preparamos a documentação para solicitação de registro, fabricamos os produtos, além da farmacovigilância pós-comercialização. Então conseguimos acompanhar todo o ciclo de vida do produto”, conclui.
Com o estudo da vacina da dengue de fase 3 em estágio final, a expectativa é que a vacina da dengue seja aprovada ainda em 2025. Ainda é necessário passar pela aprovação regulatória da Anvisa, seguida da validação da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). Para a inclusão da vacina no Programa Nacional de Imunizações (PNI), objetivo final do Butantan, é preciso que a documentação seja aceita pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC). Assim, a vacina ainda tem um caminho a percorrer até chegar nos braços da população.