Responsáveis por um dos serviços ecossistêmicos mais essenciais do planeta — a polinização —, as abelhas sem ferrão vêm ganhando protagonismo em São Paulo. O estado já conta com mais de 55 mil colmeias, de 75 espécies diferentes, distribuídas em 2.978 meliponários autorizados para uso e manejo desses insetos nativos. Para impulsionar a atividade, especialmente diante do crescente déficit de polinizadores em várias regiões paulistas, a Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística (Semil) adotou medidas estratégicas para fortalecer a sustentabilidade da atividade: simplificou o processo de regularização por meio de um sistema online e desenvolveu uma ração biotecnológica inédita para a alimentação de uma das espécies. O Dia Mundial das Abelhas foi celebrado em 20 de maio.
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O processo de obtenção da autorização para uso e manejo de fauna silvestre na categoria meliponário agora é realizado de forma automatizada pelo Sistema Integrado de Gestão da Fauna Silvestre (Gefau), com base nas informações autodeclaradas pelos interessados. Além da autorização via Gefau, é necessário o cadastro junto à Secretaria de Agricultura e Abastecimento, no sistema Gedave. A Resolução Semil nº 72/2024, que alterou a Resolução SIMA nº 11, de 2021, estendeu até 2026 o prazo para que meliponicultores com plantéis pré-existentes obtenham a autorização. Para regularizar a situação, basta acessar o sigam.ambiente.sp.gov.br e preencher o cadastro.
De acordo com Jônatas Trindade, subsecretário de Meio Ambiente da Semil, o estímulo à regularização da atividade é estratégico: “O cadastro permite que o poder público tenha um retrato fiel dos criadores e possa apoiar políticas de conservação e fomento à meliponicultura. Quem já tem colmeias e ainda não se cadastrou tem até 31 de julho de 2026 para fazer o registro no sistema”, orienta.
A regularização, além de garantir segurança jurídica aos criadores, é um passo importante para promover boas práticas de manejo, respeitando o equilíbrio ecológico e as necessidades das próprias abelhas. A criação de meliponários pode ser realizada tanto por produtores rurais quanto em quintais urbanos, contribuindo para a produção de mel, própolis e para a polinização de pomares, hortas e áreas de reflorestamento.
Balanço
A maioria dos meliponários autorizados no estado se concentra na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), Litoral Sul e Baixada Santista (890), e nas regiões de Campinas (693), Taubaté (331), Ribeirão Preto (265), Sorocaba (232) e Bauru (166). Entre as cidades com mais empreendimentos estão São Paulo (341), Campinas (97), Ribeirão Preto (74), São José dos Campos (65) e Sorocaba (56). Nesses meliponários paulistas, as espécies de abelhas sem ferrão mais comuns são a jataí (Tetragonisca angustula), com 15.048 colmeias; a mandaçaia (Melipona quadrifasciata), com 10.832; a bugia (Melipona mondury), com 5.586; a mirim (Plebeia droryana), com 2.861; e a mandaguari (Scaptotrigona postica), com 2.578 colmeias.
Para o subsecretário, o fortalecimento da meliponicultura é uma estratégia com múltiplos ganhos: “As abelhas sem ferrão são essenciais para a manutenção da biodiversidade e da produção de alimentos. Apoiar essa atividade é fortalecer o equilíbrio ecológico e a economia das comunidades”, diz.
Economia e educação ambiental
O meliponicultor Carlos Alberto Vulcano Junior, 33 anos, de Capão Bonito, no Vale do Paranapanema, é um exemplo de sucesso nesse setor. Ele começou com uma única caixa de abelhas após resgates em postes, enquanto trabalhava em uma empresa de energia. Hoje, com mais de 600 colmeias, a meliponicultura se tornou sua principal atividade econômica. “Foi amor à primeira vista”, brinca Carlos.
Ele produz cerca de 120 quilos de mel por temporada, especialmente da espécie jataí, e já investiu cerca de R$ 250 mil na atividade. Além de vender para marcas estabelecidas, está lançando sua própria marca de mel e realiza serviços de educação ambiental em parceria com uma cooperativa de Capão Bonito. “Vejo um futuro promissor para esse mercado, que está crescendo muito. Além de ter nosso próprio benefício, a gente faz um favor enorme para as abelhas e para o meio ambiente.”
Luís Alberto Bachega, 64 anos, viu no cultivo de abelhas sem ferrão mais do que um hobby. Morador de Itu, no interior paulista, ele mantém entre 150 e 200 colônias há três anos em um meliponário que combina educação ambiental e empreendedorismo. Além de multiplicar colônias e comercializar produtos como ceras, bombons de pólen e derivados, ele organiza eventos e palestras sobre a criação racional de abelhas nativas sem ferrão. “A ideia é sempre conscientizar e preparar futuros meliponicultores, oferecendo experiências práticas”, conta. As oficinas acontecem em sua casa e também em escolas, como as de Santa Bárbara d’Oeste, despertando o interesse de crianças pela conservação desses importantes polinizadores.
O biólogo Guilherme Aguirre, 44 anos, de Belo Horizonte, transformou sua paixão em profissão. Formado há mais de 20 anos, começou a criar abelhas sem ferrão em 2019 como hobby no quintal de casa, em Campinas. O encantamento pelas espécies nativas cresceu, e em 2022 ele deixou o emprego para se dedicar exclusivamente à atividade. Hoje, realiza oficinas e cursos sobre a criação racional e os benefícios ecológicos das abelhas nativas. “Na escola, aprendemos sobre uma única abelha, a africanizada. Mas temos uma diversidade enorme no Brasil que precisa ser reconhecida”, diz. Com cerca de 40 colmeias e 10 espécies diferentes — como jataí, mandaçaia, bugia e mirim-preguiça —, Guilherme também comercializa mel, própolis, caixas e livros. “Se queremos viver disso, é preciso investir tempo, energia e dinheiro”, resume.
Ração biotecnológica
A inovação vai além da gestão. Pesquisadores da Diretoria de Biodiversidade e Biotecnologia (DBB) da Semil, da Unifesp e de outras instituições desenvolveram uma ração fermentada rica em proteínas, criada especialmente para as abelhas sem ferrão da espécie mandaçaia. A chefe do Departamento de Inovação Tecnológica da DBB, Irys Hany Lima Gonzalez, co-autora da pesquisa, explicou que a ração tem composição química semelhante à do pólen fermentado natural, incluindo aminoácidos essenciais e substâncias atrativas, como isoquercetina e palatinose. Em testes laboratoriais, as abelhas consumiram a nova ração em proporções semelhantes ao pólen natural, demonstrando alta aceitação.
Segundo Irys, o estudo foi desenvolvido para enfrentar a escassez de recursos naturais durante períodos de seca prolongada ou em ambientes degradados, permitindo que as abelhas encontrem alimento. “A ração desenvolvida permanece estável por até seis meses sob refrigeração leve e pode ajudar a manter colônias saudáveis em locais onde a vegetação nativa ainda está em recuperação”, diz. O estudo foi desenvolvido e aplicado em um contexto de escassez de recursos naturais comum em períodos de seca prolongada ou em ambientes degradados para que a espécie obtenha alimento, e a ração desenvolvida permanece estável por até seis meses sob refrigeração leve e pode ajudar a manter colônias saudáveis em locais onde a vegetação nativa ainda está em recuperação.
Semil
Como desdobramento prático da pesquisa, a Semil implantou dois meliponários próprios: um em Araçoiaba da Serra, no Cecfau, já em funcionamento com 16 colmeias e sete espécies nativas, e outro na área do Parque Estadual das Fontes do Ipiranga (PEFI), na capital paulista, junto aos laboratórios da DBB, onde a ração é produzida.
Os meliponários da Semil visam ao desenvolvimento de pesquisa científica, inovação tecnológica, conservação das espécies e educação ambiental. “A iniciativa tem grande potencial para gerar dados relevantes que podem contribuir para a proteção da fauna nativa e fortalecer a meliponicultura no estado”, destaca Bruno Aranda, assistente técnico da DBB.
“Montamos o meliponário no PEFI porque é o local onde estão os laboratórios de pesquisa aplicada da DBB, onde desenvolvemos o bioproduto em parceria com a Unifesp. O artigo científico publicado sobre a ração é fruto desse trabalho pioneiro baseado no pólen e nas bactérias do próprio pólen. A perspectiva agora é produzir e usar a ração no mesmo espaço, com a possibilidade de ampliar a produção para comercialização no futuro”, complementa Patrícia Locosque, diretora da DBB e co-autora do estudo.
O avanço da meliponicultura em São Paulo reforça a importância de ampliar essa atividade especialmente nas regiões com menor presença de polinizadores. Um estudo recente do Instituto de Estudos Avançados da USP e do Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA), órgão vinculado à Semil, publicado na Série Biota Síntese, em dezembro de 2024, mapeou áreas do estado com déficit na oferta do serviço ecossistêmico de polinização. Nesses locais, a presença das abelhas sem ferrão pode fazer ainda mais diferença para a qualidade ambiental e a sustentabilidade da produção agrícola, contribuindo com um futuro mais equilibrado entre natureza e desenvolvimento rural.
“As ações se complementam dentro de uma mesma lógica: regularizar, alimentar e espalhar polinizadores nativos, promovendo uma meliponicultura responsável e conectada às políticas públicas de recuperação ambiental”, conclui Patrícia.
ASF
Nativas do Brasil, as abelhas sem ferrão (ASF) — também conhecidas como meliponíneos — são diferentes das abelhas africanizadas, pois não possuem ferrão funcional e vivem em colônias organizadas. Algumas espécies, como a jataí e a mandaçaia, são altamente eficientes na polinização de frutas, hortaliças e plantas nativas da Mata Atlântica. Produzem mel de alta qualidade e sabor diferenciado, muito valorizado no mercado. São mais de 300 espécies de ASF no país.
Essas abelhas estão presentes em praticamente todos os biomas brasileiros, garantindo a reprodução de centenas de espécies vegetais e sustentando ecossistemas inteiros. “As abelhas nativas sem ferrão são vitais para a biodiversidade. Sem elas, muitos frutos e sementes simplesmente não existiriam”, explica Patrícia.
“Temos um enorme potencial para expandir a presença dessas abelhas em São Paulo, especialmente nas regiões identificadas pelo estudo como carentes em serviços de polinização. Com a criação legalizada e sustentável, ganham o meio ambiente, a produção agrícola e os meliponicultores, que podem gerar renda com a atividade”, conclui a diretora da DBB.